quarta-feira, 31 de julho de 2024

Letreiro

 Porque não sei mentir,

Não vos engano:

Nasci subversivo.

A começar por mim — meu principal motivo

De insatisfação –,

Diante de qualquer adoração,

Ajuízo.

Não sei me conformar.

E saio, antes de entrar,

De cada paraíso.


[Miguel Torga]

(Retrato a carvão de Isolino Vaz, 1961)

domingo, 28 de julho de 2024

A meu favor

 A meu favor

Tenho o verde secreto dos teus olhos

Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor

O tapete que vai partir para o infinito

Esta noite ou uma noite qualquer


A meu favor

As paredes que insultam devagar

Certo refúgio acima do murmúrio

Que da vida corrente teime em vir

O barco escondido pela folhagem

O jardim onde a aventura recomeça.


[Alexandre O’Neill]

sábado, 27 de julho de 2024

Eu que já fui do pequeno almoço à loucura

eu que já adoeci a estudar morse

e a beber café com leite

não posso passar sem a Elisabeth

porque é que a despediu senhora doutora?

que mal me fazia a Elisabeth

a lavar-me a cabeça

não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça

eu só venho cá senhora doutora

para a Elisabeth me lavar a cabeça

só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade

de que eu gosto nos shampoos

só ela sabe como eu gosto da água quase fria

a escorrer-me pela cabeça abaixo

eu não posso passar sem a Elisabeth

não me venha dizer que o tempo cura tudo

contava com ela para o resto da vida

a Elisabeth era a princesa das raposas

precisava das mãos dela na minha cabeça

ah não haver facas que lhe cortem o

pescoço senhora doutora eu não volto

ao seu antiséptico túnel

já fui bela uma vez agora sou eu

não quero ser barulhenta e sozinha

outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?

a Elisabeth era a princesa das raposas

porque me roubou a Elisabeth?

a Elisabeth foi-se embora

é só o que tem para me dizer senhora doutora

com uma frase dessas na cabeça

eu não quero voltar à minha vida


[Adília Lopes]

“A Elisabeth foi-se embora (com algumas coisas de Anne Sexton)”

(retirado de “Dobra: Poesia Reunida, 1983-2007”, Assírio e Alvim, 2009)

CONVENTO DOS CAETANOS, 2018

 CONVENTO DOS CAETANOS, 2018


Às vezes

acontece o passado

entrar em obras,

ter de se mudar.


Corre-se a luz,

cobre-se o som;

e saem primeiro todas as caixas

(onde nunca cabe

a poeira que aconchega

o nosso mundo),

como um carrilhão amordaçado

a atravessar a cidade.


Ficam apenas as paredes,

frágil caixa de ressonância

da memória.


[Inês Dias]

Cerveja & Neve, Averno, Lisboa, 2020.

 Um nó cego no bordado

da manhã. E a ternura

interrompida pelo desfazer

dos dias até esse olhar

depois de tudo,

onde aguardava,

cauda de fora, a morte:


passar sob a pele

(uma dor mais antiga)

a linha que já

não nos prende,

cortá-la com o último beijo,

rematar um coração

cada vez mais do avesso.


[Inês Dias]



      [Wilde Fire - Laura Marling]

 li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,

quando alguém morria perguntavam apenas:

tinha paixão?

quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:

se tinha paixão pelas coisas gerais,

água,

música,

pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,

pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,

paixão pela paixão,

tinha?

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,

se posso morrer gregamente,

que paixão?

os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,

os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,

homens e mulheres perdem a aura

na usura,

na política,

no comércio,

na indústria,

dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,

trémulos objectos entrando e saindo

dos dez tão poucos dedos para tantos

objectos do mundo

e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,

pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,

palavra soprada a que forno com que fôlego,

que alguém perguntasse: tinha paixão?

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,

ponham muito alto a música e que eu dance,

fluido, infindável,

apanhado por toda a luz antiga e moderna,

os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,

a paixão grega


[Herberto Helder]

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em

Quando nos sentíssemos cansados,

fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,

convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer:

“Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se

em nuvem hoje às 9horas. Traje de passeio”.


E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,

viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.

Ternura de calafrio.


“Adeus! Adeus!”


E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…

depois os cabelos… a carne, em vez de apodrecer,

começaria a transfigurar-se em fumo…

tão leve… tão subtil… tão pólen…

como aquela nuvem além vêem?


Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis…



[José Gomes Ferreira]