sexta-feira, 22 de maio de 2009


Isso de mim que anseia desepedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


[Hilda Hilst]

domingo, 17 de maio de 2009

carpe noctem


"..De todas as venturas que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas, embora seja das mais comuns também.(...)Concordo que o sono mais perfeito é necessariamente um complemento do amor: repouso tranqüilo, refletido sobre dois corpos. Mas o que me interessa aqui é o mistério específico do sono saboreado por si mesmo, o incontrolável e arriscado mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, só e desarmado, num oceano onde tudo é novo: cores, densidades, o próprio ritmo da respiração, e onde reencontramos os mortos. O que nos tranqüiliza no sono é a certeza de que dele retornamos, e retornamos os mesmos, já que uma estranha interdição nos impede de trazer conosco o resíduo exato dos nossos sonhos. Outra coisa nos tranqüiliza ainda: é que ele nos cura
temporariamente da fadiga pelo mais radical dos processos, isto é, fazendo com que cessemos de existir durante algumas horas. Nisso, como em outras coisas, o prazer e a arte consistem em nos abandonarmos conscientemente a essa bem-aventurada inconsciência, consentindo em sermos sutilmente mais fracos, mais leves, mais pesados e mais confusos do que nós mesmos. Voltarei mais tarde aos habitantes extraordinários de nossos sonhos. Por ora, prefiro falar de certas experiências do sono puro e do puro despertar, um e outro confinando com a morte e com a ressurreição. Hoje, procuro reencontrar a antiga sensação dos sonos fulminantes da adolescência, quando adormecemos completamente vestidos sobre os livros, súbito transportados para fora da matemática e dos tratados de direito, e mergulhados num sono sólido e profundo, tão cheio de energia não consumida, que poderíamos experimentar, por assim dizer, a exata sensação de existir através das pálpebras abaixadas. (...) O sono, em curto espaço de tempo, havia reparado meus excessos de virtude com a mesma imparcialidade com que teria reparado os do vício. A divindade desse grande restaurador quer que seus efeitos benéficos se exerçam sobre qualquer pessoa adormecida, da mesma forma que a água carregada de poderes curativos não se preocupa com a identidade de quem a bebe na nascente.
Mas, se meditamos tão pouco num fenômeno que absorve quase um terço de nossa existência, é porque é necessária uma certa modéstia para apreciar seus dons. Adormecidos, Caio,Calígula e o justo Aristides equivalem-se. Eu próprio renuncio a meus vãos e importantes privilégios e já não me distingo do guarda negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que é nossa insônia, senão a obstinação maníaca da nossa inteligência em manufaturar pensamentos e formular uma série de raciocínios, silogismos e definições que lhe são próprios? Ou, ainda, a recusa em abdicar em favor da divina estupidez dos olhos fechados ou da sensata loucura dos sonhos? O homem que não dorme — e tenho tido, desde alguns meses, freqüentes ocasiões de constatá-lo em mim mesmo — recusa-se mais ou menos conscientemente a confiar no fluxo das coisas.(...)Propositadamente, jamais olhei dormir aqueles a quem amava: descansavam de mim, bem sei; sei também que me escapavam. Todo homem se envergonha do seu rosto alterado pelo sono. Quantas vezes, tendo-me levantado muito cedo para ler ou estudar, eu próprio coloquei em ordem as almofadas amassadas e os lençóis amarrotados, evidências quase obscenas dos nossos encontros com o nada, provas de que a cada noite deixamos de existir..."


[Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar]

quinta-feira, 7 de maio de 2009

"..Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.."

[Fernando Pessoa]

*há dias minha consciencia grita isso pra mim. Preciso de uma mordaça ou de uma dose bem servida de coragem/ânimo/fé.

domingo, 3 de maio de 2009

Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.
Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.


[Lya Luft]