domingo, 17 de maio de 2009

carpe noctem


"..De todas as venturas que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas, embora seja das mais comuns também.(...)Concordo que o sono mais perfeito é necessariamente um complemento do amor: repouso tranqüilo, refletido sobre dois corpos. Mas o que me interessa aqui é o mistério específico do sono saboreado por si mesmo, o incontrolável e arriscado mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, só e desarmado, num oceano onde tudo é novo: cores, densidades, o próprio ritmo da respiração, e onde reencontramos os mortos. O que nos tranqüiliza no sono é a certeza de que dele retornamos, e retornamos os mesmos, já que uma estranha interdição nos impede de trazer conosco o resíduo exato dos nossos sonhos. Outra coisa nos tranqüiliza ainda: é que ele nos cura
temporariamente da fadiga pelo mais radical dos processos, isto é, fazendo com que cessemos de existir durante algumas horas. Nisso, como em outras coisas, o prazer e a arte consistem em nos abandonarmos conscientemente a essa bem-aventurada inconsciência, consentindo em sermos sutilmente mais fracos, mais leves, mais pesados e mais confusos do que nós mesmos. Voltarei mais tarde aos habitantes extraordinários de nossos sonhos. Por ora, prefiro falar de certas experiências do sono puro e do puro despertar, um e outro confinando com a morte e com a ressurreição. Hoje, procuro reencontrar a antiga sensação dos sonos fulminantes da adolescência, quando adormecemos completamente vestidos sobre os livros, súbito transportados para fora da matemática e dos tratados de direito, e mergulhados num sono sólido e profundo, tão cheio de energia não consumida, que poderíamos experimentar, por assim dizer, a exata sensação de existir através das pálpebras abaixadas. (...) O sono, em curto espaço de tempo, havia reparado meus excessos de virtude com a mesma imparcialidade com que teria reparado os do vício. A divindade desse grande restaurador quer que seus efeitos benéficos se exerçam sobre qualquer pessoa adormecida, da mesma forma que a água carregada de poderes curativos não se preocupa com a identidade de quem a bebe na nascente.
Mas, se meditamos tão pouco num fenômeno que absorve quase um terço de nossa existência, é porque é necessária uma certa modéstia para apreciar seus dons. Adormecidos, Caio,Calígula e o justo Aristides equivalem-se. Eu próprio renuncio a meus vãos e importantes privilégios e já não me distingo do guarda negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que é nossa insônia, senão a obstinação maníaca da nossa inteligência em manufaturar pensamentos e formular uma série de raciocínios, silogismos e definições que lhe são próprios? Ou, ainda, a recusa em abdicar em favor da divina estupidez dos olhos fechados ou da sensata loucura dos sonhos? O homem que não dorme — e tenho tido, desde alguns meses, freqüentes ocasiões de constatá-lo em mim mesmo — recusa-se mais ou menos conscientemente a confiar no fluxo das coisas.(...)Propositadamente, jamais olhei dormir aqueles a quem amava: descansavam de mim, bem sei; sei também que me escapavam. Todo homem se envergonha do seu rosto alterado pelo sono. Quantas vezes, tendo-me levantado muito cedo para ler ou estudar, eu próprio coloquei em ordem as almofadas amassadas e os lençóis amarrotados, evidências quase obscenas dos nossos encontros com o nada, provas de que a cada noite deixamos de existir..."


[Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar]

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