quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em

Quando nos sentíssemos cansados,

fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs,

convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer:

“Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se

em nuvem hoje às 9horas. Traje de passeio”.


E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,

viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.

Ternura de calafrio.


“Adeus! Adeus!”


E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes…

primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…

depois os cabelos… a carne, em vez de apodrecer,

começaria a transfigurar-se em fumo…

tão leve… tão subtil… tão pólen…

como aquela nuvem além vêem?


Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis…



[José Gomes Ferreira]

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